Colecionador de ossos. A posse de esqueleto para fins de estudos configura crime?

Discussão em 'Artigos Jurídicos' iniciado por AP Advocacia, 23 de Agosto de 2018.

  1. AP Advocacia

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    Há alguns dias me deparei com uma pergunta, formulada por um estudante de medicina, o qual narrou que um amigo estava na posse de um esqueleto, o qual em tese lhe foi cedido por outro aluno, que o teria recebido de um professor.

    A questão propriamente dita era a seguinte: “possuir ossos é crime”?

    De antemão respondi que não, mas fui analisar a questão mais a fundo com o intuito de fundamentar a resposta.

    Pois bem, o artigo 211 do Código Penal dispõe, grosso modo, que a subtração de cadáver é crime e dá ensejo à imposição da pena de reclusão de 1 a 3 anos e multa.

    É preciso ressaltar que o tipo penal faz menção à palavra “cadáver”, não a ossos. A subtração daquele é crime; a deste não.

    Cadáver, de acordo com o dicionário Aurélio[1], é o corpo sem vida de homem ou animal, ou seja, o corpo não decomposto que ainda se pode reconhecer como tal. Os ossos não estariam, desse modo, abrangidos naquele conceito.

    Diante desta explanação pode-se afirmar que a simples posse de ossos, não de cadáver, é figura atípica, motivo pelo qual o estudante não teria cometido o mencionado crime de subtração.

    Outra questão importante diz respeito ao eventual cometimento de furto na subtração dos ossos. Vimos que o artigo 211 faz referência à subtração, mas de cadáver.

    O artigo 155 do Código Penal, a seu turno, define como furto a conduta de subtrair coisa alheia móvel.

    Aprendi na faculdade, salvo engano nas aulas de direito civil, que coisa é tudo que existe objetivamente com exclusão do homem, enquadrando-se no conceito os semoventes.

    Os ossos são coisas, mas não pertencem a ninguém, ou seja, não são “coisa alheia” e, portanto, não podem ser furtados. Em resumo estão fora do comércio como se costuma dizer.

    É preciso destacar, pois oportuno, que a família do falecido não é proprietária dos ossos deste, no máximo são proprietários da sepultura, isto em se tratando de cemitérios particulares.

    Desse modo aquele que subtrai ossos não comete o crime de subtração de cadáver, como destacado, tampouco de furto. Poderia, em tese, ser enquadrado nas figuras típicas relacionadas à violação de sepultura ou mesmo vilipêndio a cadáver ou suas cinzas.

    Ainda sobre o aspecto da subtração é preciso fazer um pequeno adendo, que poderia render assunto para outro artigo. Se a ossatura, por exemplo, estiver sendo utilizada por hospitais, institutos científicos ou de caráter histórico para exposição, estudo, dentre outras finalidades, neste caso poderá considerada uma espécie de patrimônio, pois pertencente a alguém e, portanto, é suscetível de ser subtraída – a figura do artigo 155 restaria presente nesta hipótese.

    Outro ponto importante diz respeito ao delito tipificado no artigo 212 do Código Penal – vilipêndio a cadáver ou as suas cinzas. Se o estudante não pode ser acusado de furto, tampouco de subtração de cadáver, como vimos, estaria cometendo o delito de vilipêndio pelo fato de estar na posse de um esqueleto?

    Vilipendiar é tratar com desprezo, aviltar, desonrar. No caso em comento constatamos que o estudante não estava na posse de um cadáver, motivo pelo qual não poderia incidir nas disposições do aludido artigo.

    É conveniente, no entanto, frisar que o tipo penal também faz menção às cinzas. O estudante estava na posse de um esqueleto, que em tese não é objeto material do crime em comento.

    Não obstante o professor Nucci, ao analisar a questão, mencionou que esqueleto é objeto material do crime de vilipêndio, pois se as cinzas o é, por consequência lógica aquele também deve sê-lo[2].

    Este entendimento também poderia ser objeto de outro escrito, pois ao que parece vai de encontro ao princípio da legalidade insculpido nos artigos 1º e 5º, XXXIV, do Código Penal e da Constituição Federal, respectivamente, mas isso é outra história.

    Voltando à questão. Ainda que se possa equiparar esqueleto a cinzas, nem assim o estudante estaria cometendo o crime de vilipêndio, haja vista que a utilização dos ossos se deu no ambiente acadêmico e apenas com o objetivo de estudo, sem qualquer desonra ou desrespeito à memória do falecido.

    Em resumo, o simples fato de o estudante possuir ossos não constitui, em tese, os crimes previstos nos artigos 155, 211 e 212 do Código Penal os quais tratam de furto, subtração e vilipêndio a cadáver.

    Para finalizar e tentando abranger rapidamente uma conduta que poderia ser praticada pelo estudante temos a seguinte situação. O fato de ele encomendar junto a um terceiro a compra de um esqueleto ou mesmo de alguns ossos configuraria crime?

    De forma objetiva entendo que sim. O crime, no entanto, seria o de violação de sepultura.

    Embora o estudante, no exemplo, tenha apenas encomendado, mediante pagamento ou outra promessa de recompensa, os ossos, deu ensejo a que o terceiro – instigado pela promessa, violasse uma sepultura para subtraí-los.

    Portanto responderia por violação, mas na modalidade de participação – instigação, estando sujeito a responder pelo crime em virtude da previsão contida no artigo 29, § 1º, do Código Penal.

    André Pereira
    Advocacia André Pereira


    [1] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio. 3ª ed. Curitiba. Positivo, 2004.

    [2] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 16ª ed. Rio de Janeiro. Forense, 2016. Pág. 1116.
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