JUSTIÇA COM AS PRÓPRIAS MÃOS

Discussão em 'Artigos Jurídicos' iniciado por gilmar luiz monego, 12 de Junho de 2019.

  1. gilmar luiz monego

    gilmar luiz monego Membro Pleno

    Mensagens:
    21
    Sexo:
    Masculino
    Estado:
    Santa Catarina
    1 . INTRODUÇÃO


    Muito temeroso ao Estado Democrático de Direito e à paz social de um País civilizado são pessoas fazendo justiça com as próprias mãos como temos testemunhado nos últimos tempos, uma prática criminalizada pela legislação penal, mas que parece estar se tornando rotineira em determinados locais, frente à ocorrência desenfreada de alguns crimes e a possível ineficiência do Estado, em todas esferas e níveis governamentais.

    Essa prática nos faz auferir que as pessoas não estão mais acreditando nas ações estatais de controle da criminalidade e do criminoso, não reconhecendo mais a noção de Estado e voltando à civilização da barbárie, que possuía aquele como o meio reconhecidamente de fazer justiça, hodiernamente um grande equivoco, não fosse chamar a atenção das Autoridades para o estado de coisas que já não se tolera mais.

    Quando não se vislumbra punição ao ato criminoso, pelas diversas razões que se costuma ouvir, aflora-se esse senso de justiça nas pessoas vitimadas, colocando em cheque toda gama de artifícios estatais, e levando a diversos questionamentos, em especial, o porquê desta insatisfação coletiva.



    2. O ANSEIO POR JUSTIÇA, A VIOLAÇÃO DEMOCRÁTICA E A QUESTÃO CULTURAL


    Primeiramente, diante dos acontecimentos sobre os quais aqui falamos, torna-se ainda mais difícil engessar um conceito de justiça. Quando este nos remete aos regramentos impostos pelo Estado que nos governa, o conceito pode até ser desdobrado com a ideia democrática de tomada de decisões e elaboração legislativa, mas assim não é por diversos motivos, dentre estes, a forma de integração social da legislação, que não se esgota apenas com a elaboração e publicação.

    Quer-se dizer, o que dá legitimidade à uma lei, ou até mesmo à constituição, que prevê garantias constitucionais hoje militadas por diversos defensores dos Direitos Humanos e violadas por boa parte da massa, não é apenas o poder constituinte originário, e muito menos a obra legislativa do poder competente, elegido democraticamente, em tese. Na verdade, além destes fatores, o que torna uma norma árvore e fruto da vontade geral, e assim, democrática strictu sensu, são os fatores mencionados somados à harmônica recepção do regramento pela massa popular, o que cria um paradoxo quanto à legislação penal vigente.

    Para Kelsen (2000, p. 27), em que pese divergir da ideia acima apresentada sobre como o ideal democrático é construído[1], anota que “[...] a experiência ensina que, se quisermos ser realmente todos iguais, deveremos deixar-nos comandar. Por isso a ideologia política não renuncia a unir liberdade com igualdade. A síntese destes dois princípios é justamente a característica da democracia."

    Eis a necessidade de compreender o que se viola com a justiça ou injustiça feita com as próprias mãos. O que se viola é um legado de gerações, é a evolução cultural para um governante e governado que não toleram este retrocesso de tomada de decisões e controle de condutas. É um problema social expressado de uma forma patética, com a força dos braços em uma era da mente.

    Podemos não ser o modelo mais justo e igualitário que poderemos conhecer, mas injustificadamente, ou não, hoje alguns ainda se arriscam a andar por linhas já caminhadas na história, linhas estas que já se mostraram desastrosas. E para ser cauteloso ao expressar a sua discrepância com os princípios constitucionais e sociais do nosso país, tais atitudes são deselegantes com todo o ordenamento jurídico construído no Brasil e em boa parte do mundo.

    O Estado possui delegação do povo para promoção do bem estar, da justiça e da paz social, mas começa ressurgir uma descrença nesse pacto social, que indubitavelmente resulta em mais injustiça, talvez seja o alerta do princípio da falência estatal, provocado pelo seus arcabouço jurídico e pela condução equivocada das políticas governamentais tonalizadas em vermelho, que muitas vezes achincalham princípios e valores básicos de nossa sociedade e do cidadão trabalhador, honesto e cumpridor de suas obrigações.

    E de fato, o que se nota no Brasil é o rompimento de um contrato social. Aqui não se referindo apenas àquilo externado através de manifestações e linchamentos, mas pelo modo como significativa parte dos brasileiros levam sua vida, em desarmonia com a principiologia e normatividade do Estado.

    Vejam bem, a nossa legislação, ao mesmo tempo em que aparenta ser benevolente, também realça no Brasil uma das maiores populações carcerárias do planeta, o que leva a crer que, no aspecto penal, não se trata de um problema de punibilidade, mas de uma sensação de insatisfação e falta de tolerância com a punibilidade seletiva, e esta sim, de fato existe no nosso país, “vide” infratores econômicos e políticos. Para estes, resta a estatística incalculável, a da impunidade.

    O que existe é o que os estudiosos chamam de função não declarada do Direito Penal, e ainda que muita gente não esteja ciente dos desdobramentos teóricos que envolvem a teoria, a turba do pega e lincha pode ser um reflexo deste intuito intrínseco de impunidade às classes dominantes, presente na nossa sistemática penal, que talvez não tenha nascido de propósito, mas se mantém por uma razão. Este tipo de injustiça sim, desagrada muito os olhos e os ouvidos da população, evidenciando uma possível causa ao problema que enfrentamos.

    Até agora foram apontados pontos pertinentes no que se refere à legalidade e democracia, mas e quanto as questões sociais propriamente ditas?

    Prosseguindo, portanto, não adianta pensar que a legislação possui, sozinha, o condão de educar uma nação, pois o povo é, hoje, o que ele recebeu ontem, e em um país onde pouco se preocupa com questões racionais, como culturais e educacionais, onde a conveniente ignorância assola milhares, o estopim chega não por um lado, mas por outro. Ou seja, manter um povo ignorante pode até ter perpetuado certos valores e poderes, repito, convenientes aos privilegiados, mas o que vivemos hoje mostra a insatisfação de forma mal educada e bárbara, condizente com aquilo que se plantou em um país com índices altíssimos de analfabetismo, com escolaridade deficiente, com péssimos representantes, e com o básico precário para tantos e abundante para muitos. Enfim, onde o exemplo não é o do bom senso, a consequência não poderia ser diferente.


    2 . A ROTULAÇÃO E A NECESSIDADE DE DIFERENCIAÇÃO


    Contardo Calligaris, psicanalista italiano, também colunista da Folha de São Paulo, transmitiu com excelência em um de seus artigos – embora publicado em outros tempos – a ideia psicológica que cerca a “turba do pega e lincha”, que tem um anseio por se mostrar diferente dos criminosos.

    Aproveitando o ensejo do respeitável psicanalista, na verdade, é a cifra negra que isenta a maioria das pessoas de serem rotuladas como criminosos, pois esta grande brecha entre os crimes cometidos e aqueles que vão ao conhecimento público com a respectiva sanção, podem acabar causando este anseio de diferenciação.

    O que não se percebe, é que muito além de um ato visto isoladamente, uma gama de circunstâncias refletem a sistemática de nossa sociedade e do nosso sistema penal. Mais do que o anseio em colocar o braço onde o poder punitivo estatal não consegue colocar, a mudança a se buscar não deve tender pelo caminho da justiça com as próprias mãos.

    Vejamos, nos estabelecimentos prisionais paulistas, o tráfico e o uso do entorpecente “crack” foram banidos pela facção criminosa dominante. Segundo relatos dos carcereiros, quem era pego fumando era surrado, e o traficante que insistia no erro era morto. Este padrão de regular condutas com as mãos no interior dos estabelecimentos prisionais se revelou efetiva, no entanto, lá a realidade é outra, e a contenção da barbárie ainda é uma luta para muitos anos. Aqui fora não podemos pautar nossas atitudes desta forma para o mesmo intuito, somos civilizados, ou pelo menos costumávamos ser (VARELLA, 2012).

    Como bem colocado por Rousseau (2006, p. 78):


    [...] Um povo que jamais abusasse do governo, também jamais abusaria da independência; um povo que sempre governasse bem não teria necessidade de ser governado. Tomando o termo no rigor de sua acepção, nunca existiu verdadeira democracia e jamais existirá.


    Fato é que a situação é grave, devemos ter cuidado ao ver com bons olhos que um criminoso seja punido pelos seus atos da forma que tem acontecido, os fatos expressam uma insatisfação extrema e temerária independente das suas razões, onde os fundamentos sociais entram em colapso, com a consequente dificuldade de adequação da população aos padrões de conduta.

    O Estado tem que reagir e sua reação deve ser enérgica e eficaz, de forma a buscar o bem comum, o bem maior, o bem do cidadão para o cidadão de bem, e que comece por eventual reforma penal, pelo bom exemplo, pela boa educação e pela boa cultura. Como disse Rousseau (2010, p. 14), “o mais forte nunca é bastante forte para ser sempre o senhor, se não transformar sua força em direito e a obediência em dever”.



    Criciúma, 17 de junho de 2014.


    Autores:


    Gilmar Luiz Mônego

    Coronel da reserva da PMSC

    Bacharel em direito e especialista em segurança pública


    Franco Cruz Mônego

    Advogado e pós graduando em Direito.




    Referências bibliográficas:


    KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.


    ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Tradução Ciro Mioranza. São Paulo: Escala Educacional, 2006.


    VENÉRIO, Carlos Magno Spricigo. A concepção de democracia de Hans Kelsen: relativismo ético, positivimos jurídico e reforma política. Criciúma: UNESC, 2010.


    VARELLA, Drauzio. Carcereiros. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.



    [1]Entende que o ideal democrático atinge seu ápice tão somente pela participação dos cidadãos na produção da ordem social a que se submetem posteriormente. No caso brasileiro, a participação no poder constituinte originário, no poder legislativo e executivo mediante o voto, etc. (VENERIO, 2010).
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